Então foi
assim que tudo aconteceu.
José Moraes
tinha apenas 22 anos quando decidiu entrar na política e fazer diferente. Isso porque
odiava ver as besteiras que os partidários cometiam. Parece que nada dava certo
e o país não crescia.
A ideia
ocorreu quando estava numa lotação e ouviu a conversa de dois sujeitos sobre o
novo escândalo na política. Um deles disse:
- O pior é
que vai ser sempre assim, entra um e sai outro e nada muda. Não chega um pra
fazer diferente.
Fazer diferente.
Essas palavras ficaram na sua cabeça:
Faz diferente, fazer diferente, fazer
diferente, fazer diferente...
E ficou
pensando em algo novo. Um desafio no seu caminho. Pensou tanto que, ao cair em
si, já havia passado do ponto em que ia desembarcar. Quando desceu, viu que
teria que andar uns 10 minutos para chegar ao local onde deveria saltar.
Começou a
caminhar resignado. Na verdade, aqueles dez minutos de andança não significavam
nada perto do desafio que tinha pela frente.
- Será?
Perguntou pra
si mesmo, espantando o transeunte que passava ao seu lado. E começou a aceitar
aquela súbita Idea de ser o político diferente.
Na casa da
namorada, quase não abriu a boca, contrariando o jovem falador que sempre fora.
Em resposta
às perguntas que lhe jogavam, só dizia:
- Nada não.
E passou
todo o domingo assim, alheio às conversas dos sogros e cunhados, alheio ao
beijo da companheira e alheio ao filme que ela alugara.
Na manhã do
dia seguinte, José Moraes foi o primeiro aluno a chegar na universidade onde
cursava jornalismo. Quando os portões se abriram, ele correu em direção à sala
de apoio ao estudante que era coordenada pelos próprios alunos e tinha o
objetivo de adquirir benefícios aos mesmos.
Ainda não havia
ninguém, resolveu esperar, mas ficou nervoso quando tocou o sinal para o início
da primeira aula.
-
Vagabundos! Como é que vamos mudar as coisas desse jeito? Cadê vocês para irem à
luta?
Correu até a
livraria e verificou o preço do livro “O pensamento vivo de Che” que há muito
via exposto na vitrina. Consultou a carteira; nada de dinheiro. Comprou no
cartão mesmo.
Na sala, mal
prestava atenção na fala do professor. Lia trecho das ideias do revolucionário
Ernesto Che Guevara e ficava a imaginar como poderia colocá-las em prática nos
dias atuais.
Dali pra
frente ele só tinha um pensamento: fazer diferente. Entrar na política, ser um
participante ativo, discutir, debater, argumentar e até brigar, se possível,
para defender a vontade da maioria dos excluídos, dos sem tetos, sem terras,
sem reforma agrária, dos sem saneamento básico, dos sem saúde, dos sem nada. Queria
era trabalhar em prol dos mais humildes. E pra isso, estava disposto a tudo. Tanto
que se filiou ao movimento estudantil e a um partido de esquerda. Começou a se
envolver em ocupações e acampamentos de invasões.
Não estava
para brincadeira. Mudava a cada dia. Vanessa já não sentia mais os carinhos
intensos que recebia do namorado. As conversas não eram mais sobre o casamento
e nem os futuros filhos do casal. José Moraes já não era mais o mesmo. E diante
das várias mancadas que deu, Vanessa resolveu terminar o relacionamento de seis
anos.
José achou
melhor assim, não ia mesmo ter tempo para namorar. Dali pra frente tinha que se
dedicar ao máximo para atingir o seu objetivo. Fazer diferente.
Em casa
também mudou. Chegou a discutir diversas vezes com a irmã por ela estar
assistindo às novelas.
- Poxa vida,
desliga essa merda, c*****. Se fosse pelo menos o telejornal...
Diante do
comportamento de revolução, os amigos de infância começaram a se afastar. Não acompanhavam
o seu raciocínio. E os novos amigos, militantes de movimentos políticos e sociais,
apelidaram-no de Zé. Era agora o Zé Moraes.
E quem não conhecia
o Zé Moraes?
O jovem que
aparecia em várias reportagens de manifestação a favor do passe livre para
estudante, contra o aumento da passagem de ônibus, contra a privatização do
metrô, contra tudo de ruim para o povo.
Ele peitou a
polícia várias vezes, inclusive tem duas marcas roxas no corpo. Resultado de
balas de borracha disparadas em meio a manifestações.
E não teve
jeito. Saiu mesmo de casa. As brigas eram com todos agora, os pais não entendiam
o seu ideal. Sendo assim, juntou as roupas e livros, e foi dividir um
apartamento com um companheiro no centro de São Paulo.
Terminou o
curso de jornalismo aos trancos e barrancos, pois não estudava para as provas e
havia deixado de participar do grupo de estudo.
Era ano de
eleição, mas cedo demais para se candidatar, então apoiou ativamente dois
candidatos do seu partido, um vereador e um prefeito.
Foi às
portas, passou de casa em casa, subiu nos caminhões e fez discurso bonito,
cheio de indignação e verdades, participou de dezenas de reuniões, carregou bandeiras
e entregou panfletos. Tudo em prol da mudança. No fim, o prefeito foi eleito,
mas o vereador não atingiu os votos válidos. Zé Moraes ficou contente, no campo
majoritário conseguiu eleger o homem.
Foi convidado
a assumir a Secretaria da Juventude, e isso não havia negociado em momento
algum. Mas não deixou de aceitar, era mais um passo para o seu crescimento.
Pediu demissão
no seu antigo emprego e, no primeiro dia útil do ano, assumiu a nova cadeira.
Começou com
cortes. Não por esse ou aquele pertencer
à administração anterior, mas por saber que ninguém ali trabalhava. Antes,
aquilo era um verdadeiro cabide de empregos. Filho de tal vereador que apoiou o
projeto tal, mas pra isso pediu uma vaga para o seu filho. Coisas de política. Mas
com Zé Moraes isso iria mudar, afina, ele veio pra fazer diferente.
Devido às demissões,
os primeiros dias foram turbulentos na secretaria. Após esse pesadelo, começou a
pensar apenas nos projetos.
***
Dois anos se
passaram e, no congresso estadual, o balanço do partido político deu nota 10
para a atuação da secretaria de Zé Moraes. Foi a partir daí que ele começou a
pensar seriamente em sair candidato a deputado estadual na eleição seguinte. Pra
isso, já contava com bastantes aliados, tanto do partido quando da sociedade
civil organizada.
Começou então
a se articular.
Nas prévias
do seu partido, a sua candidatura foi aceita quase com a maioria absoluta de
votos. Era agora pré-candidato. Mais um degrau vencido, pois sabia que não era
fácil, antes mesmo de ser aceito pelo povo, tinha que passar pelo crivo dos
companheiros do partido, e ali a briga era feia. Cobra comendo cobra. Muita
articulação e argumentos eram o que contava.
O próximo
passo foi, no ano de eleição, pedir afastamento do cargo que ocupava na
prefeitura. Tarefa cumprida no mês de abril. Aí começou a angariar fundos para
a sua campanha.
Logo de
início, comprometeu o dinheiro que havia em sua conta bancária, não ia depender
terceiros para isso, e sabia que grana em época de campanha eleitoral é questão
de negociação política.
Ele estava
convicto de sua escolha, desejava com todas as forças assumir um cargo na Assembleia
Legislativa e mostrar ao povo que tinha alguém por eles. E para os deputados
existentes, iria dar uma aula de política digna. Ia mesmo fazer acontecer.
Acreditava nisso,
e muitos viram que Zé Moraes era verdadeiro. Ia fazer diferente.
***
No mês de
julho é que liberaram a campanha eleitoral. A partir daquele ano estava
proibido showmício, cartazes, outdoors, bonés e camisetas estampadas com o nome
de qualquer candidato. Mas Zé Moraes não perdeu muito com isso. Gostava do
corpo a corpo, e tinha fé que assim iria vencer.
Numa reunião
do partido, deu risada quando ficou sabendo de alguns candidatos para aquela
eleição; um músico que cantou forró a vida toda porque não sabia fazer outra
coisa e um homossexual de 70 anos, estilista e apresentador de programa de televisão
desses que passam no período da tarde e que ridicularizam o povo.
Esses dois
nunca, nem uma vez sequer, subiram numa plenária de câmera municipal. Outros candidatos
também arrancaram risos de Zé Moraes; um ex-prefeito da cidade de São Paulo que
foi acusado várias vezes de lavagem de dinheiro e chegou a ir preso. E dois
outros que estiveram envolvidos no maior escândalo da história do Brasil. Sem contar
outras dezenas de candidatos pequenos partidos que nunca vira e nem ouvira
falar. Não tinham envolvimento político. Zé Moraes tinha, e cada dia de
campanha via que suas chances eram grandes.
***
Véspera de
eleição. Ele se esgotou. Foram três meses de andanças, conversas, passeatas, reuniões
em bairros, cansaço, pão com mortadela e água, discussão, conscientização popular,
entrevistas, elaboração de plano de governo, composição de possível assessoria...
e finalmente chegara o dia. Estava feliz. Nada de promessas, compra de votos e
cestas básicas. Tinha a plena consciência de que fez uma campanha limpa e
honesta.
Votou na
parte da manhã, passou em algumas escolas para cumprimentar amigos e eleitores.
Almoçou com companheiros partidários e de tarde foi para o diretório do
partido, onde continuou a noite toda aguardando o resultado das eleições.
Às 11 da
noite, começaram a aparecer os primeiros políticos eleitos do estado de São Paulo.
A uma da manhã
um site na internet dera o resultado completo da eleição estadual. O nome de Zé
Moraes não constava na lista de deputados eleitos.
Aquilo foi
mais que uma facada na barriga. Não podia esperar, a hora era agora, nada de
próxima eleição. Ele estava ali, vivo, com desejo mortal de fazer diferente. Mas
algo dera errado e não fora escolhido para representar o povo.
O que doeu
mais foi ver que todos aqueles candidatos medíocres e corruptos foram eleitos. Ouviu
na TV a fala do deputado homossexual.
O repórter perguntou
qual seria a primeira coisa que ele iria fazer como deputado. A resposta arrancou
lágrimas dos olhos de Zé Moraes.
- Não sei,
meu bem. Primeiro, eu quero ser apresentado à minha sala, à minha mesa, quero
conhecer os móveis que vão compor meu ambiente de trabalho. Não tenho projetos,
não cresci lá dentro, vou ter de aprender tudo.
E o repórter
insistiu numa nova pergunta, a qual o deputado respondeu:
- Não tenho sensação
nenhuma. Já sou uma vedete. Já tenho fama há muito tempo, pra mim é só um
emprego a mais.
O mais bem
votado fora o ex-prefeito da cidade, com o maior número de acusações de desvio
de dinheiro.
Naquele momento,
Zé Moraes nem pensou no que ia falar:
- Um povo
que ele esses canalhas tem é que sofrer mesmo.
No dia seguinte,
em reunião com alguns partidários para discutir e analisar as eleições, ele
ficou sabendo sobre muitos atos de corrupção dentro do próprio partido, o que
diretamente prejudicou a sua eleição. Irritou-se, resolveu tirar satisfações e,
se fosse verdade, levaria a público, porque era homem digno.
Arrumou encrenca
e se envolveu em briga física com os colegas de partido. Ameaçaram-no de morte.
A partir do
ocorrido, Zé Moraes ficou perplexo e perdeu as esperanças. Passou um dia
inteiro dentro do apartamento, refletindo sobre a sua militância.
Envolveu-se
em diversos movimentos sociais, políticos e estudantis. Filiou-se a um partido em
que acreditava. Passou muita fome, necessidades e várias vezes ficou doente em
congressos e bienais pelos estados do Brasil. Lembrou-se das viagens que fazia
dentro de ônibus fechado e cheio de
jovens fumando maconha. Ele passava mal, era a o único careta da turma. Quantas vezes não fora criticado
por isso.
Largou família,
namorada, amigos antigos, deixou de lado a profissão de jornalista, entregou
panfletos de conscientização, andou de sol a sol. Enfim, viveu pela militância, pra fazer
diferente, e no fim, acabou sendo traído, pelo povo e pelos companheiros.
Concluiu que
o país estava sem rumo mesmo, que tudo estava perdido e não tinha mais jeito. Então
resolveu fazer uma política pessoal; se desfez de tudo.
Juntou suas
decepções e saiu mundo afora.
Zé Moraes começou
a fumar maconha. Virou hippie. Quem passa pelas praias pode vê-lo, com cabelo
grande e barbudo, vendendo pulseiras e artigos confeccionados por ele mesmo.
Outubro de
2006.
Sacolinha é
o psedônimo de Ademiro Alves de Sousa, nascido em 09 de agosto de 1983 na
cidade de São Paulo (SP). Filho de Maria Natalina Alves e neto de Geralda Aves
de Sousa, ambas do município de Chapada do Norte, em Minas Gerais. Casado com a
professora e historiadora Landy Freitas, com quem teve uma filha de nome Alanda
Alves de Freitas. Sua infância e adolescência foram vividas na Cidade Líder,
bairro da Zona Leste Paulistana, mas passou a morar em Suzano (SP) em 1998 aos
16 anos.
SACOLINHA. Manteiga
de Cacau. SP: Editora Ilustra, 2012.
---
Balcão da Arte
Contato: balcaoarte@gmail.com
Facebook: Balcão da Arte
Google Plus: Balcão da Arte